Dedos e feridas

maio 04, 2024


Minha amiga olha para o dedo da mão recém-enfaixado e suspira. Um pequeno acidente, que lhe rendera uma consulta médica, pomadas, remédios e, como não poderia faltar, um ardido arranhão.

Nada quebrado, então agora era só esperar pelo correr dos dias e pela iminente cicatrização. É para onde caminham todos os arranhões e o curso de toda vida, não é mesmo? 

Bem…

O dedo logo cicatrizou, cumprindo sua promessa. Mas a dor não foi embora. Pelo contrário, parecia aumentar a cada dia.

Novos remédios, novas consultas. Nenhum progresso.

Intranquila e cada vez mais incomodada, ela observava o dedo aparentemente bom. Não haveria motivo para se preocupar, afinal tudo, ou quase tudo, cedo ou tarde correria como esperado. Não?

Mais alguns dias se passaram até que, farta de aguardar, dirigiu-se ao médico com um incomum pedido: desejava que a ferida já cicatrizada fosse reaberta, a pele rompida e o tratamento reiniciado. 

Improvável, porém certeiro: o novo tratamento deu o resultado esperado e constatou-se um caso clínico interessante: enquanto por fora a situação se remediava, por baixo da pele cicatrizada danosos micro-organismos faziam um considerável estrago no dedo de minha amiga, tirando seu sono. Ainda bem. Certas inquietudes podem ser mais do que benéficas, quando entendemos seu chamado.

Nos dias de hoje, no entanto, quem se propõe a remexer feridas pode parecer louco e um tanto desajustado da norma comum. Mas qual o preço a se pagar por não saná-las completamente?

Uma frase conhecida corre a internet dizendo que muitas vezes “É necessário ter conversas difíceis, para evitar uma vida difícil”. Mas quem está realmente disposto a tais conversas, principalmente sob o risco aumentado da dor e de desajeitados procedimentos de convivência que, se malfeitos, podem piorar ainda mais o quadro?

Nossa sociedade, no geral, desencoraja veementemente a inquietação, as manifestações desagradáveis, os incômodos e a exposição de vulnerabilidades. A Psicologia dá nome e endereço para isso: baixa tolerância à frustração, o que pode influenciar nossa inteligência emocional e nossa capacidade de crescimento pessoal.

Fato é que quase toda ferida causa espanto e vontade de afastamento. Já o silêncio da inação, muitas vezes, parece mais belo e elegante do que qualquer procedimento delicado que possa atingir nervos já sensibilizados. Por isso, é preciso sempre cuidado ao tocar as partes já inflamadas — nossas e dos outros — que precisarão de contato neste processo.

“Que maravilha as pessoas que não incomodam” — ser sempre agradável e aparar calosidades é o anseio genuíno de muitos. Porém, ter esse anseio como meta final de toda e qualquer interação significa dar muito mais peso às aparências e ao conforto do que ao real conteúdo vivencial pungente por baixo das camadas da pele e do coração.

É por isso que acreditar sempre na máxima de que “basta viver e não incomodar”, pode, em alguns casos, trazer resultados bem diversos do sossego e da calmaria esperada. Estranhamos, porém, quando desse tão “inofensivo” plantio em busca de uma vida sem quinas nem arestas — e aparentemente ausente de atritos — colhe-se o caos.

Isso talvez se deva, principalmente, pela maneira restrita de observar a atividade das Leis Universais, ou Leis da Criação, julgando-as por um olhar que muitas vezes não corresponde a seu real modo de ser. Tudo no Universo é ação e uma bela vida protocolar, sem grandes turbulências terrenamente visíveis na superfície, não é garantia que por baixo de seu caldo não se enredem inúmeros e perigosos fios, atados por inação.

Por muito e muito tempo, agir sempre sem incomodar foi celebrado pelas leis sociais dos costumes e também pela interpretação errada de muitas vertentes religiosas. 

Se libertar da poeira dos séculos que paira sobre nossas almas com seus conceitos errados, impedindo voos espirituais mais amplos e livres, é tarefa para mais de uma vida. “Tudo tem de se tornar novo!” exorta o escritor Abdruschin. Para isso, velhos costumes de alma precisam ser deixados de lado, permitindo a absorção completa de novos conhecimentos que penetrem mais fundo, para além da superfície. Afinal, de que adianta a busca por uma nova vida em pele aparentemente sana, se por baixo de suas camadas revolve-se justamente aquilo que arde em busca de entendimento e cura?

Caroline Derschner

“Visto nada existir que o ser humano, em sua presunção, ainda não tenha tocado nem envenenado, assim tudo tem de ruir, para então se tornar novo, mas não segundo a vontade humana, como até agora, e sim segundo a vontade de Deus, que nunca foi compreendida pela alma humana corroída devido à própria vontade.”

Abdruschin, Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal



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